Ontem lembrei-me de uma das pessoas que conheci em Baucau.
Lembrei-me porque estava a ler um livro. Lembrei-me porque não consigo terminar de ler esse livro. Angustia-me.
É um livro que foi escrito por um rapaz, que há alguns anos era uma das muitas crianças soldado da Serra Leoa. É uma história simples na sua complexidade, mas perturbadora por ser real. Lembrei-me do Kanu, major do exército da Serra Leoa, destacado para Baucau como observador militar. Sempre alegre e simpático, mas ao mesmo tempo muito duro. Conversei com ele várias vezes sobre a Serra Leoa, sobre as crianças soldado, sobre as mãos decepadas para que as pessoas não votassem, sobre os diamantes de sangue, sobre a miséria e sobre a esperança que consegue renascer desta realidade.
Quando a 6 de Agosto começaram os problemas em Baucau com o anúncio de quem iria governar Timor, passámos a viver no escritório durante 6 dias. Fui para o escritório ao fim da manhã e não fui autorizada a sair mais. Nas ruas de Baucau atiravam-se pedras, vandalizavam-se edifícios, queimavam-se escritórios de Ong´s, armazéns de arroz, algumas casas. No meio de tudo isto a minha inexperiência, ingenuidade ou simplesmente irresponsabilidade, faziam-me pensar que o meu desejo de ir para casa era perfeitamente legítimo e que não havia razões para todas aquelas restrições. Queria muito ir para casa ou pelo menos que me deixassem ir buscar as coisas que eu considerava básicas e não tinha comigo. Tentei de várias formas, pedi a várias pessoas, todos se recusavam a ir comigo e sozinha era impossível.
Pedi escolta aos militares do exército do Bangladesh (responsáveis pelo distrito de Baucau)que andavam a patrulhar as ruas. Ouvi um não sem reservas, afinal a minha escova de dentes não valia uma ida ao outro lado da cidade.
Por último, pedi ao Kanu. Disse-me que sim imediatamente.
No meio do meu espanto com aquele sim, sou repreendida por um dos security officers que diz que nem pensar, que só posso ir, mesmo acompanhada pelo Kanu, se tiver escolta dos militares do Bangladesh. Fomos falar de novo com os militares do Bangladesh. Recusam-se a sair do complexo da UN. Recusam-se não por considerarem o meu pedido ridículo, mas porque têm medo. O Kanu percebe isso também e transforma-se. Fica irritado, revoltado, zangado. E não é por causa da importância da minha escova de dentes, os motivos são bem mais consistentes. Ele olha nos olhos daqueles militares e diz com um tom de voz que nunca lhe tinha ouvido: “you are a militar, you are part of an army, what is stoning? Why are you so afraid of stoning? Tell me, what is stoning?” Aquela expressão “what is stoning, what is stoning” ecoava na minha cabeça, não me deixava pensar e só conseguia estar arrependida por ter gerado uma discussão entre pessoas com experiências de vida tão diferentes, apesar de todos militares.
Consegui ir a casa buscar a minha escova de dentes, voltar para o complexo da UN e nada aconteceu. Vi a cidade completamente vandalizada e vi os olhos do Kanu que já no carro me dizia para não estar preocupada que não ia acontecer nada naquela curta viagem, que em África disparam tiros em vez de atirarem pedras, que aqueles militares do Bangladesh não eram militares mas crianças assustadas no recreio da escola quando os rapazes mais velhos fazem uma ameaça, que um militar não pode ter medo, que tem que estar preparado para enfrentar tudo, etc, etc , etc. Chegou a um certo momento que as imagens da cidade vandalizada e as palavras do Kanu misturavam-se na minha cabeça e eu já não conseguia dizer nada.
Aquele major do exército da Serra Leoa que aos domingos à tarde ia para a praia de Baucau vestido com o seu polo branco, calções brancos, ténis e meias brancas, que todos com um sorriso nos lábios diziam parecer um jogador de ténis, que me mostrou orgulhoso fotografias dos 2 filhos, que todos os dias almoçava connosco na casa da D. Cesaltina, sempre com uma piada pronta e gargalhadas fortes, não admitia falhas nem medos.
Há olhos que viram demais. Como os do Kanu. E aqueles que não viram o mesmo nunca vão perceber. Afinal, “what is stoning?” …
Lembrei-me porque estava a ler um livro. Lembrei-me porque não consigo terminar de ler esse livro. Angustia-me.
É um livro que foi escrito por um rapaz, que há alguns anos era uma das muitas crianças soldado da Serra Leoa. É uma história simples na sua complexidade, mas perturbadora por ser real. Lembrei-me do Kanu, major do exército da Serra Leoa, destacado para Baucau como observador militar. Sempre alegre e simpático, mas ao mesmo tempo muito duro. Conversei com ele várias vezes sobre a Serra Leoa, sobre as crianças soldado, sobre as mãos decepadas para que as pessoas não votassem, sobre os diamantes de sangue, sobre a miséria e sobre a esperança que consegue renascer desta realidade.
Quando a 6 de Agosto começaram os problemas em Baucau com o anúncio de quem iria governar Timor, passámos a viver no escritório durante 6 dias. Fui para o escritório ao fim da manhã e não fui autorizada a sair mais. Nas ruas de Baucau atiravam-se pedras, vandalizavam-se edifícios, queimavam-se escritórios de Ong´s, armazéns de arroz, algumas casas. No meio de tudo isto a minha inexperiência, ingenuidade ou simplesmente irresponsabilidade, faziam-me pensar que o meu desejo de ir para casa era perfeitamente legítimo e que não havia razões para todas aquelas restrições. Queria muito ir para casa ou pelo menos que me deixassem ir buscar as coisas que eu considerava básicas e não tinha comigo. Tentei de várias formas, pedi a várias pessoas, todos se recusavam a ir comigo e sozinha era impossível.
Pedi escolta aos militares do exército do Bangladesh (responsáveis pelo distrito de Baucau)que andavam a patrulhar as ruas. Ouvi um não sem reservas, afinal a minha escova de dentes não valia uma ida ao outro lado da cidade.
Por último, pedi ao Kanu. Disse-me que sim imediatamente.
No meio do meu espanto com aquele sim, sou repreendida por um dos security officers que diz que nem pensar, que só posso ir, mesmo acompanhada pelo Kanu, se tiver escolta dos militares do Bangladesh. Fomos falar de novo com os militares do Bangladesh. Recusam-se a sair do complexo da UN. Recusam-se não por considerarem o meu pedido ridículo, mas porque têm medo. O Kanu percebe isso também e transforma-se. Fica irritado, revoltado, zangado. E não é por causa da importância da minha escova de dentes, os motivos são bem mais consistentes. Ele olha nos olhos daqueles militares e diz com um tom de voz que nunca lhe tinha ouvido: “you are a militar, you are part of an army, what is stoning? Why are you so afraid of stoning? Tell me, what is stoning?” Aquela expressão “what is stoning, what is stoning” ecoava na minha cabeça, não me deixava pensar e só conseguia estar arrependida por ter gerado uma discussão entre pessoas com experiências de vida tão diferentes, apesar de todos militares.
Consegui ir a casa buscar a minha escova de dentes, voltar para o complexo da UN e nada aconteceu. Vi a cidade completamente vandalizada e vi os olhos do Kanu que já no carro me dizia para não estar preocupada que não ia acontecer nada naquela curta viagem, que em África disparam tiros em vez de atirarem pedras, que aqueles militares do Bangladesh não eram militares mas crianças assustadas no recreio da escola quando os rapazes mais velhos fazem uma ameaça, que um militar não pode ter medo, que tem que estar preparado para enfrentar tudo, etc, etc , etc. Chegou a um certo momento que as imagens da cidade vandalizada e as palavras do Kanu misturavam-se na minha cabeça e eu já não conseguia dizer nada.
Aquele major do exército da Serra Leoa que aos domingos à tarde ia para a praia de Baucau vestido com o seu polo branco, calções brancos, ténis e meias brancas, que todos com um sorriso nos lábios diziam parecer um jogador de ténis, que me mostrou orgulhoso fotografias dos 2 filhos, que todos os dias almoçava connosco na casa da D. Cesaltina, sempre com uma piada pronta e gargalhadas fortes, não admitia falhas nem medos.
Há olhos que viram demais. Como os do Kanu. E aqueles que não viram o mesmo nunca vão perceber. Afinal, “what is stoning?” …
6 comentários:
estou assim, muito vaidosa de ti! e não é só pela forma como zelas pela tua higiene dentária...
sim imediato? à minha escova de dentes?puxa!!!minha querida escova de dentes:-)
Tás muito engraçada na foto
Ritaaaaaaaaaaa··········!!!!!!!! adorei a historia de Kanu. E muito bonita"""!!!
Sento saudade de vc.
Eu também tenho saudades, muitas!!
Então não há mais artigos? Não vais abandonar o blogue?
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