domingo, 23 de março de 2008

Ausencia

A minha ausencia deste blog e da vida das pessoas que me sao mais proximas, nao foi de forma alguma, planeada e escolhida.
Nao tenho ambicoes a ermita e a minha vontade de socializacao continua intacta e igual ao que sempre foi.
E agora por onde comecar?
Comecar pelo facto de nao ter tido acesso a internet durante uma semana e pelo facto de que quando tive essa hipotese estava tao cansada que nao conseguia raciocinar e os mails para casa limitavam-se ao “esta tudo bem”...
Ah, ja agora, quando cheguei ao distrito que me estava destinado, Dhankuta, tive o prazer de verificar que a minha falta de capacidade com tecnologias nao era o motivo de nada funcionar aqui. O “nada” refere-se a parafernalia de equipamento com que me presentearam em Katmandu.
Demorei 1 semana a descobri como e onde podia ter internet (e nao foi com o equipamento que me ofereceram!), mas apos a descoberta da polvora, faltava-me o tempo. Hoje e dia livre, com uma reuniao ao meio dia e e so. O fim de semana aqui resume-se ao sábado. Domingo toda a gente trabalha, e dia normal de aulas, de reparticao de financas aberta… e um dia de trabalho normalissimo.
Acho que se ficasse aqui mais de 3 meses, isso seria coisa a que nunca me habituaria… fds de 1 dia.
Caindo na tentacao de fazer deste blog um diario, sai de Katmandu e fui para Biratnagar. Esta cidade fica na zona mais oriental do Nepal. A 3 kms da fronteira com a India. E a segunda maior do país e a mais industrializada. Nao e bonita e nao tem interesse nenhum, mas houve uma coisa que me fez ficar feliz quando la cheguei, a quantidade de carros, muito, muito menos carros que em Katmandu e consequentemente, muito menos poluicao. Em vez disso dezenas e dezenas de bicicletas e muitas vacas a passearem por todas as estradas.
A cidade e muito quente… sim, o Nepal tambem tem zonas quentes e planas. A grande maioria da populacao vive nessas zonas, a percentagem de nepaleses que vive nas montanhas e minima quando comparada. O que esta a volta sao campos e mais campos de arroz… e e so.
Depois de mais uma semana de briefings em Biratnagar, vim para Dhankuta.
Dhankuta e uma pequena cidade (ou vila ou aldeia ou pequeno aglomerado populacional ou qualquer coisa com pouco do conceito europeu de cidade), que fica numa regiao de colinas. Melhor, a regiao e considerada como sendo de colinas, mas para mim que sou portuguesa, nascida e criada em Portugal, colinas de 3000m e 4000m nao sao de todo colinas, sao montanhas e grandes! De qualquer forma, aquí o que e considerado montanha e ainda mais alto...
Quando aquí cheguei uma das 1as coisas que reparei e que os rostos das pessoas sao completamente diferentes de Katmandu ou Biratnagar. Ate aqui a grande maioria dos nepaleses para quem olhava pareciam-me indianos, completamente indianos. Tambem estao aqui e nao sao tao poucos como isso, mas para alem desses muitos outros parecem saidos de países de estepes… sao totalmente mongois (e nao sei se esta e a definicao certa, admito a minha ignorancia), de olhos rasgados e sem nada de indiano.
A complexidade social deste país e quase asustadora. A populacao divide-se em castas, grupos étnicos e se outros factores houver para criar diferencas, nao vao ser deixados de lado. Nunca tinha tido contacto com uma sociedade tao rigida, tao estratificada, tao hierarquizada.
As castas… por muito que tente compreender e encarar como uma diferencia cultural, com tudo o que possa ter de criticavel, nao consigo, deixar de sentir repulsa por este sistema. Filho de pedreiro vai ser pedreiro toda a vida, filho de medico, será medico, filho de campones, camponeses… casamentos entre diferentes castas sao raros e desencorajados.
No topo estao os Brahman e os Chhetri (Hindus e homens), depois os Rai (descendentes de tibetanos e de outros povos oriundos de zonas de estepes), na base desta piramide e considerados impuros mas tocaveis estao os mulcumanos e os estrangeiros. No fim e bem no fim, estao os Dalit, impuros e intocaveis. Intocaveis porque sao tao impuros que nao sao sequer merecedores de toque.
A condicao das mulheres e difícil de descrever e quase me faltam palavras porque a tendencia e escrever 2 ou 3 frases cheia de adjectivos. Basta dizer que ser mulher ja de si e um pecado, no caso de se ser mulher e Dalit, o pecado e duplo.
Sou a única estrangeira nesta aldeia, os nepaleses com que trabalho sao exclusivamente homens e sao uma elite, obviamente. O meu assistente e nepales e muitas vezes em vez de falarem para mim e para ele que falam, e uma luta constante para tentar que tentem assimilar o facto de que e com a mulher que tem que falar. Colegas homens que estao noutros distritos, estao bem integrados na comunidade e nos ambientes de trabalho, sao convidados para as celebracoes religiosas e outros eventos que possam acontecer. Nem eu, nem nenhuma das outras colegas que estao em distritos, foi convidada para o que quer que fosse. Nao sao hostis para nos, mas simplesmente somos mulheres e aceitam-nos no ambiente de trabalho porque a isso sao obrigados.
Pessoas que conheci em Timor e que tinham estado em Africa, referiam muitas vezes que os timorenses eran muito fechados. Eu que vivi em Timor 7 meses e que agora estou no Nepal, acho que Timor era um paraíso. Um paraíso com problemas mas um paraíso. Uma sociedade predominantemente masculina onde ainda se compram noivas com bufalos, mas muito mais aberta e propensa a evolucao social e a dar hipoteses as mulheres do que neste país.
Aqui as pessoas em geral sao muito fechadas e a distancia que mantem e grande. Nao se aproximam nem deixam que delas se aproximem. Os poucos contactos mais próximos que consegui ir tendo com nepaleses, deixam perceber que uma vez conquistada a confianca sao pessoas afaveis e que gostam de receber, mas ate la… o caminho a percorrer e longo, mais longo ainda quando se e mulher. A excepcao e sempre a mesma... as criancas, muito mais timidas aqui que em Timor, mas sem palavras.
E depois quem ve de fora nao percebe a aceitacao dos maoístas e o apoio que lhes e dado. Porque e que os maoístas tem um exercito cheio de mulheres e porque e que, ao contrario do que se pensa muitas vezes, nao precisam ser financiados pela China ou por quem quer que seja, porque acabam por vingar como movimento espontaneo e autónomo. Estando aqui e olhando a volta, nao e difícil perceber os porques… E quanto a influencia chinesa, nao me parece que seja assim tao grande, ao contrario do que eu propia pensava antes de aqui chegar. Ha influencia externa sim, mas indiana. Quando se diz que o Nepal e “landlocked”, os nepaleses costumam dizer que essa afirmacao esta errada, porque na realidade o país e “Indialocked”.
Ainda em relacao ao sistema de castas, ja falei sobre esta questao com alguns nepaleses e a ideia que tentam sempre transmitir e que hoje m dia so em alguns meios rurais mais remotos e que existe quem de crédito a esse sistema, porque com a tentativa de democratizacao e com o aumento do numero de criancas a ir a escola e a receber educacao a aumentar, o sistema esta cada vez mais em descretito.
Honestamente, acredito que muito lentamente alguma coisa va mudando na mentalidade destas pessoas, mas este discurso parece-me mais uma tentativa de nao se distanciarem dos sistemas acidentais, de fazer parecer que a estrutura social aqui, afinal nao e assim tao diferente, porque na realidade nao me parece que seja assim tao linear.
O meu assistente disse-me uma vez que ele e a familia tinham adoptado uma menina Dalit. Ontem referi-me a essa crianca como “a tua filha”, ao que ele respondeu: “ela esta la em casa e cuidamos dela, mas filha so tenho uma, ela nao e minha filha”. O nepales responsavel por todo o proceso eleitoral num distrito onde esta uma das minhas colegas, disse-lhe que ela nao deveria cumprimentar as mulheres que fazem a limpeza ao escritorio… estará o sistema a cair de facto em descretido? Nao me parece…
Prometo ir escrevendo mais, sempre que possa, entretanto tenho a dizer que dado o tamanho avantajado deste post, todos aqueles que tiverem a paciencia de ler isto ate ao fim, receberao um presente directamente do Nepal.

7 comentários:

Anónimo disse...

Uau! Fiquei abismaravilhado com o teu relato!
De facto já começava a sentir saudades dos teus posts, mas dada a situação que vives, presumi que estivesses demasiado ocupada para te dedicares à net.
Fascinou-me imenso a tua extensa descrição acerca da realidade sociocultural desse país. E confesso que aprendi muito com ela, pois é didáctica, ainda que com um tom muito pessoal. Sugiro que comeces a pensar em escrever um livro sobre as tuas experiências no estrangeiro, quando regressares... lol
Não sabia que aí o sistema de castas era muito acentuado, tal como na Índia. E que a guerrilha maoísta tinha grande aceitação entre a população.
Realmente, pelo que constato do teu relato, o Nepal é um país parado no tempo, quiçá o último país oriental que ainda vive no feudalismo. Por isso, em meu entender, acho que a implantação da república, seguida dum conjunto de reformas políticas e económicas de cariz laico, será a solução para o desenvolvimento desse país.
Contudo, tenho algumas reservas em relação aos maoístas. Se a sua ideologia for a do marxismo chinês radical, não serão o movimento ideal para encetar o processo de transformação política... A ver vamos!
Espero que relates mais coisas interessantes acerca da fantástica experiência que estás a viver. E cuida-te!
Bjs.


PS: Li o teu post com todo o gosto, por isso declino gentilmente o teu "presente directamente do Nepal"... lol

Josuué disse...

Ops! eu li! quero um presente directamente do Nepal!
Boa sorte com as tecnologias e o desmantelamento do "sistema castas".
Beijinhos.

Ana Paula Afonso disse...

li até ao fim e fiquei agradavelmente surpreendida com a promessa feita no final do teu 'post'... :) Pois é Rita, não podemos mudar o mundo sozinhas mas podemos ir mudando algumas pessoas. Esse é um dos teus papéis aí - ensinar em troca do muito que aprendes. Tenho a certeza que vais fazer a diferença na vida de algumas pessoas, como fazes sempre. Mesmo que não mudem os hábitos, fica a memória de algo que poderia ser diferente. E, quem sabe, um dia a memória não se transforma em presente para um futuro melhor para muitas dessas pessoas?

Maria Manuela disse...

O que importa é que estás bem....

Bjo

Unknown disse...

parabéns, óptima descrição da realidade nepalesa, de facto é um país ainda muito fechado e "atrasado"(?) aos olhos ocidentais.
O sistema de castas, é um sistema injusto, e tal como tu espero que acabe qualquer dia, mas vai levar tempo, porque apesar do que muita gente pensa, ha certas mudanças que mesmo necessárias e justas, não podem ser incutidas à força por outras culturas, tem de haver um processo de transição e habituação senão há conflitos.
Bom resto de estadia
Pipas

Miguel Neto disse...

Ola, rita. É o Miguel Neto. Li ao teu ao fim, e gostei muito do teu texto. Não te preocupes quanto à promessa. Eu depois confesso te as tuas faltas.
Olha, gostava de te deixa uma palavra de conforto e de amizade. Força Rita, quem lê os teus post sente que estás a fazer algo este nosso mundo. Senti ti as eleiçoes do Nepal nao estariam tão bem organizadas. Dá o melhor de ti, como sempre.

carla alexandra vendinha disse...

li até ao fim. quero o presente.
para alem dos outros, claro!